O Sistema Financeiro da Habitação

A Lei nº 4.380/64 instituiu o Sistema Financeiro da Habitação e criou o Banco Nacional da Habitação como forma de incrementar a construção de moradias ao trabalhador brasileiro (art. 9º), nascendo desse artigo a finalidade social do sistema. Dentre todas as normas decorrentes do sistema e como forma de disciplinar as garantias constituídas pelas hipotecas de primeiro grau do imóvel financiado, foram criadas duas normas: a primeira pelo Decreto-Lei nº 70/66, permitindo a execução extrajudicial e, segunda, a Lei 5.741/71, permitindo a execução judicial dos créditos hipotecários (aqui em harmonia com o CPC).

Como base para instruir a duas execuções o BNH determinou a obrigatoriedade de expedição de 2 (dois) Avisos de Cobrança (de acordo com a RC 11/72). Assim o art. 32 do DL. 70/66 prescreve:

“Art. 32, § 1º Se, no primeiro público leilão, o maior lance obtido for inferior ao saldo devedor no momento, acrescido das despesas constantes do artigo 33 mais as do anúncio e contratação da praça, será realizado o segundo público leilão, nos 15 (quinze) dias seguintes, no qual será aceito o maior lance apurado, ainda que inferior à soma das aludidas quantias.

§ 2º Se o maior lance do segundo público leilão for inferior àquela soma, serão pagas inicialmente as despesas componentes da mesma soma, e a diferença entregue ao credor, que poderá cobrar do devedor, por via executiva, o valor remanescente de seu crédito, se nenhum direito de retenção ou indenização pender sobre o imóvel alienado.

§ 3º Se o lance de alienação do imóvel, em qualquer dos dois públicos leilões, for superior ao total das importâncias referidas no caput deste artigo, a diferença final apurada será entregue ao devedo
r”.

Entretanto, como acontecia costumeiramente, por falta de licitante, o agente credor adjudicava o imóvel pelo saldo devedor, sendo expedida a Carta de Adjudicação pelo Agente Fiduciário para fins de Registro Imobiliário e posterior revenda do imóvel no próprio sistema (Lei 4.595/64). Nesse caso (REsp. 734080/PB), o STJ entendeu pela aplicação do art. 7º da Lei 5.741, mesmo diante de execução patrocinada nos moldes do DL. 70/66, reconhecendo a extinção da dívida. Já pela decisão no REsp. 605.357-MG, ficou reconhecido:

“3. A disposição normativa do art. 7º a Lei 5.741/71 (segundo a qual, com a adjudicação do imóvel pelo exequente, fica “exonerado o executado da obrigação de pagar o restante da dívida” tem natureza de direito material, e não estritamente processual, já que consagra hipótese de extinção da obrigação. Como tal, é norma que se aplica à generalidade dos contratos vinculados ao Sistema Financeiro da Habitação, independentemente do procedimento adotado para a sua execução”.

Já a Lei 5.741/71 cujos procedimentos estavam norteados pelo CPC, assim prescreve: “Art. 6º Rejeitados os embargos referidos no caput do artigo anterior, o juiz ordenará a venda do imóvel hipotecado em praça pública por preço não inferior ao saldo devedor, expedindo-se edital pelo prazo de 10 (dez) dias. Parágrafo Único; Art. 7º Não havendo licitante na praça pública, o Juiz adjudicará, dentro de 48 (quarenta e oito) horas, ao exequente o imóvel hipotecado, ficando exonerado o executado da obrigação de pagar o restante da dívida”.

Entretanto, no DL. 70/66, quando arrematado o imóvel por terceiro com lance superior à dívida, essa diferença menos os custos do processo, eram devolvidos ao devedor. Muito embora sem previsão na Lei Especial de obrigatoriedade de avaliação do imóvel para fins de praceamento, tanto a doutrina como a jurisprudência entenderam pela aplicação do CPC. Assim tanto o DL. 70/66 como a Lei 5.741/71 (aqui pelo CPC), tratam da possibilidade de devolução ao devedor de parte do pagamento. Em virtude da ampla discussão sobre a (in)constitucionalidade do DL. 70/66 como também os procedimentos adotados, tais como a falta de avaliação e da atuação dos agentes fiduciários (empresas contratadas pelos agentes financeiros), esse procedimento caiu em desuso no SFH.

O Sistema Financeiro Imobiliário

No que tange a aplicação da Lei 5.741/71, mesmo considerando todos os ataques aos seus procedimentos, a demora do processo também era uma das consequências mais alegadas pelos Agentes Financeiros, determinando que essa inadimplência gerava um efeito na continuidade do sistema e a reaplicação dos recursos em novos financiamentos. Para minimizar os efeitos dessa legislação e desprezar o instituto da hipoteca (que não se confunde com a morosidade da justiça), foi criado o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) pela Lei 9.514/97, instituindo a alienação fiduciária como garantia e inovando seus regramentos desde a concessão do crédito e o pagamento final, como novo processo de execução extrajudicial definido pelos artigos 25 a 30, destacando-se:

“Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para alienação do imóvel.

§ 1º Se, no primeiro público leilão, o maior lance oferecido for inferior ao valor do imóvel, estipulado na forma do inciso VI do art. 24, será realizado o segundo leilão, nos quinze dias seguintes.

§ 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.

§ 4º Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendida o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 526 do Código Civil.

§ 5º Se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º”.

Entretanto, mesmo sendo uma legislação do ano de 1997, agora com mais fluência, começam a surgir decisões sobre a aplicação da lei e seu alcance jurisprudencial, a exemplo, de recente decisão sobre a não devolução dos valores pagos pelo devedor executado, afastando-se a aplicação do CDC.

Melhim Namen Chalhub (Negócio Fiduciário, Renovar, 2000, pg. 273) com sua doutrina já comentava: “A Lei 9.514/97 dispõe sobre determinada espécie de contrato, com disciplina própria; sabendo-se que, em caso de antinomias, prevalece a norma especial sobre a norma geral, é a Lei 9.514/97 que deve prevalecer sobre o CDC, observados os princípios de equidade e boa-fé. No caso da alienação fiduciária de bens imóveis, a prevalência se dá não só em razão do critério da especialidade da lei, como também, pelo critério da cronologia, pois a lei que disciplina essa garantia imobiliária é posterior ao CDC”.

Considerando, assim o conteúdo e a finalidade das normas em questão, cotejando-se as disposições do art. 27 da Lei 9.514/97 com as do art. 53 do CDC, pode-se concluir pela inaplicabilidade deste último à alienação fiduciária de imóveis, porque o regime especial dessa garantia já contempla a tutela do devedor, e o faz de maneira específica, com rigorosa adequação à estrutura dessa garantia, enquanto que, o art. 53 do CDC apenas anuncia um princípio geral, não plenamente adequado à hipótese tratada na Lei nº 9.514/97.

Ainda, nesses comentários, consta: “De outra parte, o leilão visa captar recursos não só para satisfação do crédito, mas, também, para reposição das quantias pagas pelo devedor”. Nesse caso de devolução, tratado pelo autor, é quando ocorre a arrematação por terceiros em valor superior a dívida e todos os custos do procedimento, a exemplo do que também ocorria quando da aplicação do DL. 70/66 e Lei 5.741/71. Entretanto, iniciou-se uma discussão no sentido do devedor, após a perda da propriedade, na forma da Lei, exigir a aplicação do art. 53 do CDC no sentido de obter a devolução dos valores pagos até a sua inadimplência (saldo devedor na consolidação da propriedade).

Assim a recente decisão no STJ (REsp.1891498) afastando a aplicação do art. 53 do CDC, consolida a posição doutrinária trazida pelo dr. Melhim Namen Clhalhub e coloca uma pá de cal na discussão dessa matéria, mantendo-se, assim, a integral aplicação da lei do SFI e a consequente reposição do capital mutuado e de sua reaplicação em novos financiamentos, girando o mercado imobiliário.

Ademais, na análise da aplicação do DL. 70/66, Lei 5.741/71 e Lei 9.514/97, fica patente a intenção do legislador em proteger o devedor, exonerando-o de pagar o saldo da dívida, como também o beneficiando quando o valor arrecadado no público leilão sobejar valor decorrente da diferença entre a dívida e seus encargos e o valor do lance oferecido. No mais, todas essas legislações têm em comum, sendo as duas primeiras antes da Lei do Consumidor e a última, pós sua vigência, em não reconhecer qualquer direito do devedor em receber em devolução as quantias pagas na forma do contrato extinto.

Dalton A. S. Gabardo
Gabardo & Gabardo Sociedade de Advogados
OAB-PR. 11.123